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Flash mob: uma nova fissura na sociedade do espetáculo
Por Rodrigo Gurgel
Enquanto os acadêmicos debatem sobre o caráter artificial e mentiroso do que imaginamos ser a realidade, pessoas comuns se organizam para happenings plenos de nonsense, capazes de, momentaneamente, estupidificar algumas dezenas de espectadores e, rompendo a ordem, criar um minuto de estranhamento.
Uma nova mobilização instantânea realizada em território brasileiro, aconteceu neste domingo, às 15 h, na Avenida Paulista, em São Paulo, sob o telão ao lado do prédio da tevê Gazeta. Dezenas de pessoas sentaram-se na calçada, sacaram controles remotos de seus bolsos e, esticando os braços na direção do telão, tentaram, por cerca de um minuto, zapear. Levantaram-se, depois, e batendo palmas, dispersaram-se.
Essa forma de manifestação coletiva, ainda que ocorra sem qualquer justificativa aparente, a não ser o desejo do inusitado, guarda consigo possibilidades infinitas, cujo limite é a criatividade humana. E eventos relâmpagos desse tipo começam a surgir imbuídos, por exemplo, de uma finalidade caritativa.
Com o advento da Internet assistimos, nos últimos anos, mudanças que nem mesmo os melhores mestres da ficção científica haviam previsto. O ICQ, muito mais do que os chats, representou um inigualável avanço na velocidade e na qualidade de presentificação do ato de se comunicar. Os blogs significaram a abertura de infinitos atalhos pessoais, explicitando e concretizando o direito - até então, um direito apenas tácito - à liberdade de expressão, e um importante reforço na luta contra o monopólio dos meios tradicionais de comunicação. O uso conjunto do celular e da internet agilizou e revigorou as formas de organização e manifestação políticas de massa. Agora, o Flash mob vem incutir uma nova fissura na sociedade do espetáculo.
A criação de um mundo à parte é um rompimento - ainda que momentâneo - com a ordem. Não se trata apenas de um ato de contestação, pois os gestos e as palavras dos movimentos de contestação já foram absorvidos pela mídia e, portanto, pelo imaginário popular. Ou seja, já não produzem mais os efeitos almejados. Desgastados pela mídia, tornaram-se peças da sociedade do espetáculo, marionetes em um mundo no qual a imagem prevalece sobre o real. Ou, como diria Guy Debord, um mundo onde imagem e real - espetáculo e realidade - já são indistinguíveis. Trata-se, agora, de deformar o espetáculo, como atores que, rompendo os limites estreitos do roteiro, se rebelassem em cena e - por um átimo - resvalassem perigosamente em direção ao caos.
Seria interessante se pudéssemos conversar prolongadamente com cada um dos participantes de um Flash mob, mas suspeito que, subjacente a todas as respostas, encontraríamos idéias capazes de conectar o gosto do excêntrico e do inexplicável a um informe desejo de liberdade.
O Flash mob é a resposta a uma sociedade na qual cada um de nossos gestos está carregado de uma triste previsibilidade. Nosso beijo não nos pertence, mas é apenas a repetição do beijo que nossas retinas captaram em uma distante - ou recente - sessão de cinema; nosso olhar interrogativo é um simulacro do olhar interrogativo que, há uma semana, assistimos em um comercial de tevê - e este, por sua vez, é somente a cópia grosseira do erguer de sobrancelhas de Humphfrey Bogart em dado momento de O falcão maltês.
Quando a banalização se torna a regra e cada uma das atitudes humanas está prevista na programação da Matrix, então a melhor rebeldia é o culto ao anômalo, não como sombras ou espectros que repetem os mesmos slogans ou gritos de guerra, mas como seres capazes de conceder ao extraordinário um caráter de festa.
Um Flash mob é, na verdade, uma espécie de potlach, no qual seus participantes queimam, simbolicamente, a ordem da sociedade, recusando - ainda que por poucos instantes - os valores acumulados em suas consciências como bens inquestionáveis da civilização. Seus participantes destroem, por um momento, a lógica que rege a vida social, desobedecendo as normas ritualísticas da normalidade e queimando nessa fogueira de indisciplina os valores incutidos em nossas consciências. E, ao abandonarem a cena escolhida, levam consigo a sensação de, desapegados por alguns minutos de suas certezas, estarem reconstruindo a si mesmos, deixando um rastro salutar de espanto e insegurança nos espectadores.
A Internet abre, a cada dia, novas e imprevisíveis promessas ao planeta, concedendo à engenhosidade humana cunhas capazes de não apenas criar fissuras sociais, mas também de transformar cada uma dessas fendas em rachaduras que, efetivamente, comprometam a estrutura de um sistema cujas regras são desumanas, excludentes e injustas. O Flash mob é apenas mais uma dessas bem-vindas promessas.
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